Foi um escândalo nacional que gerou ondas de indignação por todo o país, um dos mais ferozes críticos da especulação foi revelado ao público como um especulador. Muitos criticaram, houve até pessoas que não sabiam o que acreditar, como é possível não confiar num político? Como podem pessoas que condenam o medonho capitalismo, o vil metal, serem apanhados nas malhas do lucro? Vivemos no século XXI, é inacreditável como os políticos afinal não são anjos, agentes do bem, valorosos heróis, gente com uma impecável conduta moral, como é possível esta lamentável situação? Apesar da torniturante vaga de indignação, o fluxo acabou por desfazer-se lentamente nas conversas do quotidiano, as pessoas regressaram às suas vidas, conscientes que afinal é a vida que comanda o sonho, e os políticos não são diferentes das pessoas comuns. Poucos dias depois da tremenda agitação em torno do caso do especulador, o Sr. Francisco encontrou-se com os seus comparsas numa das esplanadas do Funchal. Nesse convívio estava presentes os Mendes, pai e filho, e Nuno Crato da Silva, advogado reformado e Miguel Nascimento. O filho do Mendes lançou o assunto para a mesa, como se tivesse toda uma doutrina moral entranhada nas entranhas.
- Não acredito - disse em tom contestatário - que um político deva seguir à linha os ideais que defende para o país, se a lei permite a especulação, que mal tem essa criatura praticar os actos que condena? Se é legal, qual será o crime?
Miguel Nascimento, fica perplexo com esta indagação, não só porque não concorda com esta, mas pela sua candura, o filho do Mendes estava a ser honesto, tremendamente honesto, de uma forma que a sua geração seria incapaz.
- Mas repare, o que é ilegítimo nesse senhor não é a questão legal, mas a moral. Ele não pode apregoar uma moral e praticar outra, ele não pode condenar certos actos e praticar esses mesmos actos.
- Moral, o que é a moral? - replicou o filho do Mendes. - Creio que podemos ter ideais, e desejar certos princípios para a sociedade, mas isso pouco tem a ver com a vida real. Na vida real a moral conta pouco, ou nada.
- O que me espanta - respondeu prontamente Miguel Nascimento - é o seu despudor em dizer isso. A minha geração não teria a lata, perdoe-me a expressão, de admitir uma coisa dessas à viva voz. Claro, que tivemos os nossos charlatães, os nossos bandidos, a minha geração teve a sua pandilha, mas creio que nunca ninguém defenderia os seus crimes e pecados, publicamente, pelo menos.
O advogado Nuno Crato Silva compreendeu o argumento, a questão não é cometer furtos e obter ganhos de modo hipócrita, é a candura como esta geração admite os seus erros de forma flagrante como se isso não tivesse consequências.
- O senhor sabe o que é autoridade moral?
- Sei perfeitamente! É perigosa! Os políticos perfeitos devem governar tendo conhecimento de causa. Um santo político nunca será um bom político. E eu faria exactamente o que este senhor fez. Na política condenaria veementemente a especulação, mas seria um imbecil se tirasse proveito disso. E não quero imbecis a nos governar.
- Ou seja - respondeu o advogado - o senhor aprova o contorcionismo moral desse especulador porque é um contorcionista.
- Sim, claro.
Miguel Nascimento não pode crer. Esta afirmação é inacreditável. Sinais do tempo, pensou. O pai Mendes entra na conversa para apaziguar os mais velhos.
- O meu filho nunca será um especulador. Julgo que não é suficientemente astuto para isso, vejam lá a sua honestidade sincera (sic). Não é isso que desejamos dos nossos governantes? Que sejam sinceros.
- Sinceros, genuínos e que tenham autoridade moral, ou seja, que pratiquem aquilo que defendem! - ditou alegremente o Sr. Francisco.
- Deveras, meu caro. - respondeu o pai Mendes.
- É melhor que um político seja um impostor, desde que competente que....
- Meu Deus...Mudemos de assunto, por favor? As suas palavras são generosas, porque ficamos a saber como pensam os homens do seu tempo, mas um homem não aguenta muita realidade por muito tempo. Por favor, tenha piedade. - suplicou o advogado.
E assim, o diálogo foi para outras paragens.
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