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Mensagens

A mostrar mensagens de agosto, 2018

Literatura & Vida

Não digo isto com altivez, como se o acesso à literatura fosse um passaporte social, não o é, nem o vejo desse modo. Os pergaminhos da cultura nunca ajudaram em nada em vida social, podem ter sido úteis na intimidade, nos cantos da intimidade a cultura tem saboroso valor, mas na vida social é muito pouco relevante discutir um romance, os versos de um poema ou uma ideia de um filósofo, a cultura na vida social é apenas um trunfo se poder ser usada como arma, já assisti a isso, mas nunca foi meu apanágio. Nunca usei a cultura como arma, nem tenho interesse nisso. Aliás, porque quem usa a cultura como arma geralmente é um filisteu. Mais uma vez digo isso porque testemunhei esses episódios.  A minha relação com a literatura é um antídoto da vida, enquanto a vida é caótica, confusa, cruel e inclemente, uma prosa bem construída ou um bom verso são chaves para o éden, são, assim, um bálsamo, tem um efeito terapêutico de escape, de fuga da mundanidade e da vulgaridade. Não nego a sua utilid

A roleta russa democrática

O caso Le Pen - Web Summit foi amplamente discutido, e os termos do debate giraram em torno da liberdade de expressão da candidata da Frente Nacional. Ainda tentei entrar no debate com a ideia de Karl Popper, é um paradoxo, mas devemos ser intolerantes com a intolerância. Mas depois reflecti sobre o assunto e cheguei à conclusão que o debate não é sobre um direito. Ser orador na Web Summit não é um direito. A Web Summit é uma iniciativa privada patrocinada pelo Estado Português e serve um conjunto de propósitos que, por muito duvidosos que sejam, não incluem patrocinar a mensagem política de Le Pen.  É uma questão de democracia? Talvez, porque numa democracia ninguém pode ser vedado de veicular a sua mensagem. Mas a democracia não é uma musa espartana, que dá luta até esgotar as suas forças e dar lugar a outra forma de governo. A musa pode ser frágil e merece desvelo quando a sua segurança está em risco.  A democracia tem regras e limites, Le Pen preservera na sua "luta"

Escolher inimigos

Escolher um inimigo pode ser uma arte, pode-se imaginar um inimigo figadal que nos conhece, é matreiro e competitivo, este inimigo pode ser uma bênção, uma motivação intrínseca, alguém que, pelo seu talento, conduz-nos à excelência, ao ápice das aptidões, um bom inimigo eleva, um bom inimigo é muito mais valioso que um conhecido, um bom inimigo é melhor do que muitos amigos. Um bom inimigo é alguém que é exigente, não admite que desçamos de nível, quer mais e melhor, um bom inimigo é uma excelsa razão para alcançar melhores resultados, ir mais longe, ser mais preciso e acutilante nas acções. Um bom inimigo, como já disse, é uma bênção.  Os maus inimigos são um desconforto, os maus inimigos são um empecilho, os maus inimigos rebaixam-se, são glutões e venenosos, são criaturas de uma inanidade solene, são criaturas que se comportam como vermes. Os maus inimigos acreditam que o rebaixamento os eleva, não elevam nada, tudo afundam nos seus termos, porque o mau inimigo não tem mestria pa

Memória é identidade

Todas as minhas leituras perdem-se na memória, sou apenas um leitor intuitivo, não um grande leitor, muito porque não estudo o texto, não cultivo as suas subtilezas, não rasuro ou deixo notas, leio apenas, e pouco mais. O papel da memória assim deixa muito a desejar, cultura é memória, não uma memória fotográfica, mecânica, mas ainda assim, uma memória funcional. Não a tenho, assim a minha cultura é incipiente, fragmentos de prosa, algumas notas fugazes. Ser culto é cultivar a memória.  A memória também deve ter um papel muito relevante na identidade, aquilo que somos é memória, não uma memória estática, de episódios com princípio, meio e fim, mas uma consciência que recria de uma memória concreta, quais são os traços da nossa identidade, qual é o nosso carácter, o que desejamos e ambicionamos. Se a memória é falível, toda a nossa identidade assenta num substrato instável. Sem fundações não há carácter. Lembro-me uma vez de um diálogo de uma conhecida, o seu discurso era uma repetiç

Uma máquina absurda de produzir cínicos

Sinto-me inclinado a escrever sobre uma susceptibilidade à perturbação, conheço uma pessoa que abdicou de todas as convenções sobre a vida social, ter um emprego, um namoro, sair com os amigos ou participar na vida cívica, para viver em reclusão. Quando aludi sobre as limitações do seu modo de vida, na inevitável solidão, a miséria e dependência, ele respondeu que quando estava sozinho não havia perturbações, e que isso deixava-o num estado de caos, a reclusão, assim, é um mal menor. Ele dá um emprego a uma palavra que levo muito a sério, a "perturbação". Para ele, os outros são uma perturbação, como não sou psicólogo ou particularmente astuto, depreendo que a sua perturbação seja uma maleita, um caso clínico, que poderia ser resolvido com fármacos. Mas ele sugere que não: "não penses que sou louco". Diz-me, apesar de ser possível que um louco fale assim. Eu apreendo, então, que o seu caso prende-se com uma aflição, uma incapacidade de barrar as perturbações do m

Só há verdadeira liberdade no silêncio

O Sr. Carlos Pinto frequenta a mesma biblioteca que Jorge Nunes, e durante anos nunca trocaram uma única palavra. Cruzavam-se sem comunicar embora tivessem interesses comuns: os livros. A sua relação podia ter permanecido nestes moldes durante toda a vida pois nenhum dos dois tinha a mínima vontade de conhecer a outra parte. O seu primeiro diálogo teve origem num episódio ocasional. O Sr. Carlos Pinto andava à procura de um livro que se tinha tornado popular (A Breve História da Humanidade), e inquiriu a bibliotecária sobre o mesmo, esta respondeu que o livro estava para empréstimo. Jorge Nunes ouviu a conversa e diz que o livro estava consigo e que o ia devolver em breve. O Sr. Carlos Pinto agradeceu candidamente. Dias depois, Jorge Nunes devolveu o livro, mas não voltou a encontrar o Sr. Carlos Pinto durante semanas. Os dois tinham agora um tema de conversa que acabou por ocorrer quando se encontraram na esplanada da biblioteca, foi Jorge Nunes que tomou a iniciativa: - Já le

Em quem confiar?

Hoje, num jornal regional, surgem os comentários de quatro actores políticos, podiam ser comentários de qualquer país do mundo, não interessa a localização, o dilema é quase universal nas democracias: em quem podemos confiar? Vamos a este exemplo concreto, trata-se de comentar obras urbanas levadas a cabo por um município, cujo executivo é politicamente distinto do governo da autonomia. O comentador que é afecto ao município, defende as obras, como é óbvio. Todos os outros comentadores, ligados ao governo, ou na oposição da câmara, condenam as obras. Como poderei interpretar estas disparidades, se não conheço os actores, nem sou afecto a nenhum partido?  Se fosse o meu partido, seguiria a opinião do meu partido, mas até que ponto isto faz sentido? Se as minhas posições dependem exclusivamente de seguir as opiniões de um partido, em que medida são válidas? Eu, assim, torno-me apenas num veículo de opinião, um amplificador de uma mensagem que acolho sem crivo ou critério. Surpreende

Uma concepção particular do sujeito

O debate sobre questões de fé e crença religiosa é frequente, já perdi a conta das vezes que assisti ou presenciei esse tipo de debate, tanto de crentes, como de descrentes. Para os segundos, é imperioso passar a palavra, as incoerências dos fiéis, as contradições da fé e os indícios sobre a inexistência da entidade divina. Os primeiros tentam defender-se como podem, tentando alegar que a razão não pode explicar a fé. Não sou teólogo, não me posso expressar com profundo conhecimento de causa, só que ontem li um argumento que aponta o indício forte que Deus não existe, um teólogo pode refutar o argumento com maior acutilância, mas lembrei-me que mesmo não conhecendo a teologia o argumento pode ser refutado. O argumento sintético é o seguinte: 1) Se Deus existe, deve intervir no mundo para prevenir o mal. 2) Deus não intervém no mundo para prevenir o mal.  3) Logo, Deus não existe.  Este argumento parte do pressuposto que Deus é omnipotente, infinitamente bom e omnisciente. Clar

Confiança Epistemológica

Sou um leigo em muitos assuntos, daí que o meu conhecimento sobre certas matérias dependa de outros, de especialistas, estudiosos e académicos, ou, em certos casos, de aficionados. E é um aficionado que venho defender hoje. Ele tem um canal do Youtube, com vídeos onde se debruça sobre a Segunda Guerra Mundial, especialmente, sobre a Frente Oriental. Podem encontrar o seu canal pesquisando por "TIK", ou através deste interessante link  onde o aficionado exorta a se pensar criticamente.  Este aficionado parece determinado a desmontar alguns mitos sobre a Frente Oriental, uma odisseia interessante porque, como já escrevi, a veracidade da história é relevante. O TIK quer desmontar o mito que não foram os alemães que perderam a guerra (que na Rússia chama-se a Grande Guerra Patriótica), mas sim os russos que a ganharam. À partida parece um assunto irrelevante, todos sabemos que os russos chegaram a Berlim, que importa saber este pequeno detalhe? O TIK alega que na historiografi

Novilíngua, poder e astúcia

Nos debates acalorados é muito frequente aparecer contradições flagrantes, por exemplo, é perfeitamente possível dizer que os adversários praticam um determinado discurso de tribo quando é evidente do que é dito serve unicamente o propósito para defender alguém da sua tribo. O discurso é perfeitamente elástico, maleável e sinuoso.  As conivências pontuais permitem pessoas de pólos ideológicos diferentes agir em conformidade. A esquerda ou a direita são perfeitamente permeáveis ao discurso malicioso, sendo assim, a ideologia não é propriamente uma matriz que orienta as posições, é o próprio discurso que toma comando naquilo que se defende ou rejeita. Este tipo de permeabilidade ao discurso, por muito atroz, contraditório e sinuoso que seja, é um perigo para a democracia. Há quem diga que o maior trunfo de Trump é exactamente saber lidar com o discurso. Ele pode parecer tosco, mas o discurso dominante é tosco, impreciso, nem sempre comporta a noção de veracidade ou realidade. E neste