Avançar para o conteúdo principal

Memória é identidade

Todas as minhas leituras perdem-se na memória, sou apenas um leitor intuitivo, não um grande leitor, muito porque não estudo o texto, não cultivo as suas subtilezas, não rasuro ou deixo notas, leio apenas, e pouco mais. O papel da memória assim deixa muito a desejar, cultura é memória, não uma memória fotográfica, mecânica, mas ainda assim, uma memória funcional. Não a tenho, assim a minha cultura é incipiente, fragmentos de prosa, algumas notas fugazes. Ser culto é cultivar a memória. 
A memória também deve ter um papel muito relevante na identidade, aquilo que somos é memória, não uma memória estática, de episódios com princípio, meio e fim, mas uma consciência que recria de uma memória concreta, quais são os traços da nossa identidade, qual é o nosso carácter, o que desejamos e ambicionamos. Se a memória é falível, toda a nossa identidade assenta num substrato instável. Sem fundações não há carácter. Lembro-me uma vez de um diálogo de uma conhecida, o seu discurso era uma repetição constante da sua identidade: o que sou? O que quero? O que faço? Pareceu-me na altura algo bastante tedioso, mas reconheço agora que essa litania de repetição sobre o "eu" tem os seus méritos, e quem não pratica esse exercício acaba por perder o fio de Ariadne, perde-se nas "perturbações" sem saber regressar a si, a um local seguro, ao lar espiritual. 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Léxico

zorata - doida escabujar - mexer fanchona - mulher imponente esampada - embruxada lastrar - dar lastro macanjo - palerma coitanaxo - coitado futre - ordinário récega - golpe de sol forjicada - cozinhada chambaril - pau de suspensão do porco morto galilé - alpendre na igreja esperluxar - luxar murzango - triste resulho - parte sólida do caldo mesoneiro - vendeiro (de ‘mesón’)

Com ou sem decoro?

Lembro-me de uma história sobre um rapaz "que era bom demais para ser verdade", a figura ouviu das boas porque todas as suas acções eram correctas, íntegras e cândidas, não podia ser verdade, não existe bondade assim (não estou a falar de mim). Lembro isto a propósito de Marcelo, digamos que o seu discurso é irrepreensível, mais do que perfeito, é demasiado excelso para ser verdade. Levanta a ques tão se é verdadeiro, honesto e coerente, fica a ideia que tanta bonança só pode ser premeditada, hipócrita e dissimulada, é fruto de uma mente calculista. E aqui reside um problema fundamental. O que importa? A aparência, as formalidades e os sinais exteriores do discurso? Ou a essência? Não digo que o presidente seja uma besta, mas quanto a bestas, quais são as preferidas? As que dissimulam ou as rudes e genuínas?

Karl Kraus

Karl Kraus reproduzia em espectáculos de grande impacto trechos que encontrava em jornais, assim, descrevendo a decadência dos costumes através da palavra escrita, o modo como a linguagem pode conduzir à perversão. Foi um visionário, anteviu a emergência dos nazis e a queda da Áustria ao terceiro reich. Sinto que posso fazer exactamente o mesmo nos dias de hoje, como se estivéssemos numa antecâmara de uma catástrofe. As eleições no Brasil fizeram-me compreender que a propaganda nos dias de hoje é um fenómeno horizontal, são as pessoas comuns que deliberadamente propagam a distorção dos factos, posso até achar que existem organizações em torno das fake news e tudo mais, mas a sua influência seria mínima, residual se não houvesse uma horda de ávidos colaboradores.