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Novilíngua, poder e astúcia

Nos debates acalorados é muito frequente aparecer contradições flagrantes, por exemplo, é perfeitamente possível dizer que os adversários praticam um determinado discurso de tribo quando é evidente do que é dito serve unicamente o propósito para defender alguém da sua tribo. O discurso é perfeitamente elástico, maleável e sinuoso. 

As conivências pontuais permitem pessoas de pólos ideológicos diferentes agir em conformidade. A esquerda ou a direita são perfeitamente permeáveis ao discurso malicioso, sendo assim, a ideologia não é propriamente uma matriz que orienta as posições, é o próprio discurso que toma comando naquilo que se defende ou rejeita. Este tipo de permeabilidade ao discurso, por muito atroz, contraditório e sinuoso que seja, é um perigo para a democracia. Há quem diga que o maior trunfo de Trump é exactamente saber lidar com o discurso. Ele pode parecer tosco, mas o discurso dominante é tosco, impreciso, nem sempre comporta a noção de veracidade ou realidade. E neste cenário torna-se fácil usar as correntes de opiniões para singrar politicamente. 

Creio que um déspota que tenha lido Derrida, Habermas ou Sartre pode perfeitamente usufruir da desconstrução da linguagem, da afronta aos poderes instituídos, extrair autoridade da vagueza, e aproveitar-se astutamente do caos discursivo que outros intelectualmente tentaram produzir. Em suma, pode usufruir do arsenal destes pensadores para propósitos que não se coadunam com valores humanistas ou voluntariosos, uma espécie de Pacto Molotov–Ribbentrop, em que uns fornecem os meios da linguagem e do discurso para fins totalmente desiguais dos seus princípios. Bastará, então, um pouco de astúcia para tirar melhor proveito das contradições do discurso, e da pouca adesão da linguagem à realidade. E isto não é nada de novo, os populistas sempre souberam extrair o melhor proveito da desordem. 

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