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Só há verdadeira liberdade no silêncio




O Sr. Carlos Pinto frequenta a mesma biblioteca que Jorge Nunes, e durante anos nunca trocaram uma única palavra. Cruzavam-se sem comunicar embora tivessem interesses comuns: os livros. A sua relação podia ter permanecido nestes moldes durante toda a vida pois nenhum dos dois tinha a mínima vontade de conhecer a outra parte. O seu primeiro diálogo teve origem num episódio ocasional. O Sr. Carlos Pinto andava à procura de um livro que se tinha tornado popular (A Breve História da Humanidade), e inquiriu a bibliotecária sobre o mesmo, esta respondeu que o livro estava para empréstimo. Jorge Nunes ouviu a conversa e diz que o livro estava consigo e que o ia devolver em breve. O Sr. Carlos Pinto agradeceu candidamente. Dias depois, Jorge Nunes devolveu o livro, mas não voltou a encontrar o Sr. Carlos Pinto durante semanas. Os dois tinham agora um tema de conversa que acabou por ocorrer quando se encontraram na esplanada da biblioteca, foi Jorge Nunes que tomou a iniciativa:
- Já leu o livro sobre a história da humanidade?
O Sr. Carlos Pinto estava sentado sozinho, como se estivesse alheio ao que o rodeava. Aliás, era essa a impressão que deixava em todos os sítios que passava.
- Sim, já li o livro. É um livro um pouco triste, não acha?
Jorge Nunes não compreendeu porque o livro seria triste, para ele era um livro científico, bem documentado. Ele encarou a tristeza como uma crítica ao rigor científico.
- Pareceu-me um bom livro…
- Não me interprete mal, por favor – respondeu o Sr. Pinto – não quis menosprezar o trabalho do autor. Digo triste porque a história da humanidade parece prosseguir através de forças que são muito maiores do que os indivíduos, são forças que não podemos controlar, como se não contássemos para nada.
- Dito desse modo, tem razão. Creio, todavia, que essas forças são puxadas por cada um de nós. Nós fazemos história, por muito insignificante que seja o nosso contributo.
- Há outro ponto que merece um reparo – respondeu o Sr. Pinto como se ignorasse o que tinha acabado de ser dito – a história da humanidade nesse livro parece ser uma flecha inexorável em marcha para o progresso. E este não dá lugar para a alma, como se para obter progresso temos que abdicar da alma.
Jorge Nunes achou o reparo um lírico, não que ignorasse o conceito de alma, mas porque julgava que o mesmo conceito não se aplicava ao livro.
- Estou a ver que é um pessimista. – indagou como se quisesse quebrar a linha de raciocínio do seu interlocutor.
- Sou, definitivamente. E se você fosse minimamente inteligente seria um pessimista também. – replicou a título de provocação.
- Há boas razões para ser optimista ou pessimista. Não podemos julgar o futuro com base no que sabemos no presente. Sabe que o autor dedica um livro ao futuro, Homo Deus…

- Não preciso que me digam o que pensar. Esse é o mal do mundo moderno. Há sempre alguém que nos diga o que devemos pensar.
O Sr. Carlos Pinto revelou-se incomodado com o que disse. Como se estivesse revoltado com o assunto. Pediu desculpa e saiu. Jorge Nunes não deu muita importância ao que aconteceu, pensou que o Sr. Carlos Pinto tinha um qualquer problema de cariz pessoal, não voltou a pensar no assunto até que, semanas depois, os dois voltaram a encontrar-se na mesma esplanada, nas mesmas mesas que o primeiro diálogo.
-  Sabe, tenho poucas esperanças na humanidade. – confessou o Sr. Pinto. – como se o diálogo não tivesse sido interrompido durante semanas.
- Por vezes, também penso o mesmo. – respondeu Jorge num tom conciliador.
- O mundo parece-me estranho, caótico, como se não fizesse parte dele. As tecnologias estão a sugar o nosso espírito.
Este ponto da tecnologia fez o Jorge lembrar-se de uma série da Netflix, sobre um bombista que considerava a tecnologia abominável.
- Há uma série na Netflix sobre esse assunto.
- O que é a Netflix? – Questionou pasmado o Sr. Pinto.
Jorge Nunes explica sucintamente o que se trata, e dá uma explicação sobre a sua alusão.
- Como deve calcular, não pertenço mesmo a este mundo.
- Não diga isso, ainda vai a tempo.
- Como eu, milhões estão perdidos. Somos os derrotados da história. – afirma desolado.
- Não creio…
- Creia, pode crer. A questão nem sequer é a tecnologia. É a liberdade, a tecnologia controla tudo o que fazemos. Não há liberdade.
- Porém, aqui estamos, livremente, a debater o assunto.
- Não tenha ilusões, meu amigo. Só há verdadeira liberdade no silêncio.
- Está a ser muito pessimista.
- Não tenho ilusões, é apenas isso. Mas confesso que não pretendo explicar com exactidão o que penso. Tenho uma descrença profunda. E sei que se alguém a refutar perco a minha identidade. A minha descrença é uma fundação do meu ser.
- Talvez com alguma abertura consiga fazer parte deste mundo.
- Eu desprezo este mundo. Essa abertura seria um acto de traição à minha consciência.
- Mas você procura livros, os livros são deste mundo. Pertencem a este mundo.
O Sr. Pinto fica visivelmente irritado com a sua contradição, como se Jorge Nunes tivesse proferido um insulto à sua integridade moral.
- É como disse: – respondeu por fim – Só há verdadeira liberdade no silêncio.
Jorge Nunes apreendeu que o assunto é delicado, como se tivesse tocado numa ferida aberta. Os dois não voltaram a conversar mas estes dois diálogos, por muito vagos e breves que fossem, deixaram uma grande marca em ambos, como se algo com significado tivesse sido extraído do inefável.


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