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Uma longa tradição de medo

José Gil escreveu sobre o medo de existir dos portugueses, um ensaio lido há poucos anos mas que deixou uma vívida impressão. Existir é realmente um dilema, a existência é problemática, há que lidar com todo um rol de adversidades, fruto das mais variadas fontes de dificuldades, há a mórbida imaginação com figuras públicas, há a ferocidade dos detratores, há os críticos fuinhas que são muitos e com as mais paralisantes frustrações, existir é difícil, árduo, ninguém sai incólume da existência. Claro que isto não significa que não se deseje ardentemente existir. Subir na "escada social" é uma obsessão nacional, e quem se atreve a escapar da sua condição humilde sofre as mais estranhas consequências, não se admite o sucesso a qualquer um em Portugal. É preciso pedir licença para ter sucesso. 
Talvez tudo isto seja apenas uma consequência do estado espiritual dos portugueses, muitos portugueses não convivem muito bem consigo próprios, não aceitam com gentileza o facto de serem inexistentes, ser ignorado em Portugal é uma afronta, lembro-me de um escritor a mencionar um crítico: «não sei quem ele é». Um insulto! Não existir é um labéu, um ultraje, ninguém se atreva a admitir que um português é desconhecido. Ser desconhecido é ser ninguém, e se se é ninguém, não importa para nada, pode estrebuchar, mas se é ninguém, até pode ter talento, mas é ninguém, não importa para nada o seu intrínseco valor. Esta obsessão prende-se com a mania de ter estatuto, só existe quem tem estatuto. É mais importante ter estatuto do que ter talento, mérito ou valor. É mais precioso. Isto revela uma fraqueza, uma peçonha dificuldade, o português tem muita dificuldade em "ser-para-si", em ser alguma coisa sem conquistar o estatuto primeiro, tudo depende deste. O português depende dos outros para existir. 
Ora, isto é uma questão metafísica, paradoxal e metafísica. Há o medo de existir e uma dificuldade de ser alguém sem sinais exteriores que sinalizem essa interioridade do ser, a vida interior depende do ser alheio. É um paradoxo, tudo começa numa vida interior um pouco inóspita, árdua e intrigante em complexos e cismas. Quer-se existir, mas nem sempre há coragem para isso. Quem sofre mais é quem já existe. Quem existe merece toda a malícia. A existência alheia é inoportuna, um incómodo, uma evidência da própria (in)existência, e isso merece toda a cólera. 


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